Preconceito linguístico: UNIVESP TV entrevista o prof. Ataliba Castilho sobre a polêmica do livro didático
UNIVESP TV entrevista o prof. Ataliba Castilho sobre a polêmica do livro didático
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Ederson Granetto entrevista o professor Ataliba Castilho sobre o polêmico livro didático para jovens e adultos distribuído pelo MEC a 4.236 escolas do país, quase meio milhão de alunos.
Ataliba T. de Castilho é professor titular da Universidade de São Paulo.
Na revista Língua:
O neo-gramático
Organizador da primeira gramática feita com base na linguagem falada discute os caminhos do ensino do português no Brasil
No colégio em São José do Rio Preto (SP), em 1945, o pequeno Ataliba encucara com um colega, pobre como ele, mas fluente em inglês. Como, perguntava-se, sem dinheiro para aulas particulares, Nilton falava bem outro idioma? Língua Portuguesa - Por que uma gramática da fala? Qual a diferença em relação à gramática tradicional? Estaria nessa "autonomização" a razão de o brasileiro considerar chato o português? O que é preciso para tornar o ensino gramatical eficiente? Como um professor pode ensinar a entender a língua?
- Só converso comigo mesmo em inglês. Falo sem falar, para mim, como todos, mas em outra língua. Se não sei uma palavra, vou ao dicionário e anoto.
O método rudimentar de auto-ensino causou impressão em Ataliba Teixeira de Castilho. O hoje lingüista viu no monólogo interior uma descoberta.
- Só 20% da língua é para comunicar. A maior parte do tempo, a usamos para pensar, tomar decisões, imaginar. Num sonho, uma personagem conta o que muitas vezes a gente nem sabia ou testemunhou. É a língua em sua potência máxima.
O idioma é mais que ferramenta, é um meio pelo qual a pessoa se organiza e reflete. O fato de pensarmos em português, não por idéias puras, mostra o poder do idioma, diz o professor da USP e da Unicamp. Mostra, ainda, que a modalidade falada é mais rica que sua versão escrita.
Tal preocupação materializa-se na edição do primeiro dos cinco volumes da Gramática do Português Culto Falado no Brasil (Ed. Unicamp). A coleção envolve 32 pesquisadores de 12 universidades, desde 1988, como Clélia Jubran e Ingedore Koch. Retoma a Norma Urbana Culta (Nurc), que de 1970 a 78 gravou 1.500 horas de falas em cinco capitais (1 hora = 40 páginas de transcrição). Mas a análise gramatical das gravações só se realizou na obra atual. Ela buscou entender a organização textual, a morfologia, as sentenças, os sons e os sentidos. O resultado é uma monumental contribuição à pesquisa, que, de quebra, aponta os limites do ensino.
Ataliba de Castilho - Porque não dá para entender o idioma só pelo estudo da variedade escrita. A gramática que lançamos vai do texto à fonética. A tradicional, da fonética para a sentença, e pára por aí. Mas não dá para entender bem a sintaxe se não se parte do texto. A sentença só tem realidade no texto, onde foi criada. Não é uma entidade autônoma.
Nunca se fez uma gramática da oralidade. Parte-se da idéia de que devemos aprender gramática para saber escrever. Mas a tradicional nunca trata do texto, quando é preciso partir daquilo que, em tese, seria mais completo: o discurso. Depois é que posso descer a outros níveis, até o som, essa entidade mínima que já não é mais portadora de sentido. A gramática tradicional escolarizou nossa percepção sobre as línguas, como se essa disciplina tivesse um fim em si mesma. Nenhuma gramática limitada à oração tem tal autonomia. O texto, o discurso, é que tem. Nós falamos por texto. Lemos, pensamos, somos texto.
Ouço muitos alunos dizerem "Não entendo a gramática", e, ao dizer isso, usaram uma sentença gramaticalmente perfeita. Eles a conhecem, mas não identificam na gramática escolar aquela que internalizaram, quando pequenos. As gramáticas escolares não estão conseguindo mostrar isso, daí as reclamações.
Levar o aluno a refletir sobre sua fala e escrita, como ponto de partida. Formular perguntas sobre as características do idioma, de forma sistematizada, assistindo o aluno na busca das respostas. Com o tempo, o aluno será levado a se apropriar de escritas mais elaboradas, o que é obrigação da escola. Ele precisará desse conhecimento para ir do seu mundo familiar para um maior, o da sociedade. Mas não pode começar desse ponto em seu percurso escolar. O engano nas aulas é colocar o ponto de chegada como de partida. Achar que o ensino tem a ver com o que está codificado e encerrado na gramática, a partir do que devemos fazer exercícios, significa afastar o aluno da reflexão. Mas é com aquele mundo lingüístico primeiro em que ele está envolvido que devemos começar a prática escolar.
Invertendo o jogo. Se puser o aluno a indagar de forma sistemática, a aula não se limitará à exposição professoral. Será uma busca científica do aluno. No nível dele, é claro. Ele deve ser estimulado a buscar respostas a suas perguntas, em lugar de receber respostas a perguntas que não fez. Isso exige do professor um forte conhecimento lingüístico, pois há um programa pela frente no ano letivo e ele deve ter noção do rumo que toma. O que está por trás de uma gramática falada é trocar a idéia de curso pela de percurso.
"É preciso ajudar as pessoas a verem que gramática é muito mais do que regras. Quando se diz que algo 'é certo', o que se fez foi uma escolha"
Uma gramática do falado permite a idéia de "percurso"?
Justamente porque na oralidade encontramos intacto o processo de criação lingüística, que é quase invisível na escrita. Se o aluno fizer transcrição de entrevistas, os processos ficarão evidentes, facilitando a formulação de perguntas. Achadas algumas respostas, o aluno pode comparar seus achados com os dos pesquisadores e cada resposta levará a mais perguntas. Ele será envolvido num raciocínio sem fim. A reflexão sobre a língua é isso: não tem fim. Nunca se vai dizer que se descreveu tudo. Este é outro problema da gramática tradicional. Ela passa a impressão de que lá está tudo. A língua é mais complicada que isso. O interessante é mostrar essa complicação e como podemos nos movimentar em meio a ela. As pessoas acham o português chato porque lhes foram dadas respostas a perguntas que não fizeram.
Quais as grandes diferenças entre o culto e o popular?
Não é tão grande a distância. Há, é claro, pontos bem marcados na estrutura da língua em que há diferença, como a concordância nominal e verbal. O culto faz uma concordância repetitiva, redundante. Já no registro popular, a aplicação da regra é mais econômica: marca só o primeiro elemento. Em "as revistas impressas", duplicamos a marcação do plural. No popular, "as revista impressa", só o primeiro elemento, o artigo, está marcado. Em outras línguas românicas, isso virou padrão culto. Em dado momento, o francês culto passou a pôr plural só no artigo, não em todas as formas. Incorporou a regra popular e hoje ninguém mais diz "les hommes bons" ["os homens bons"] e sim "les homme bon" ["os homem bom"], mesmo que na escrita continuem anotados os -s do plural.
Há outros fenômenos populares no português culto?
A idéia de que o verbo concorda com o sujeito nem sempre se aplica. Na linguagem culta, o sujeito concorda quando vem antes do verbo. Quando vem depois, sobretudo se entre o verbo e o sujeito aparecem várias expressões, não há concordância. Os entrevistados no Nurc [modalidade culta oral, base para a gramática da fala] com freqüência produzem orações como "Chegou, depois de muita espera e teimosia de minha parte, os números da revista que eu queria." Veja que não se diz "chegaram". Mesmo a pessoa culta já cancela a concordância, nesse caso. É um passo para a perda total da concordância marcada morfologicamente, como o inglês já faz.
Alterações ocorrem mais no sentido do popular para o culto do que o contrário, não é?
Em geral, a linguagem popular é mais criativa. A pessoa não está pautada pela escola, que não freqüentou. Não tem a idéia de tradição. A pessoa culta é conservadora, pois herdeira de 6 mil anos de história. Mudamos menos a língua nessa variedade, pois nos sentimos patrulhados. As mudanças tendem a vir do popular, que em dado momento a classe culta aceitou.
O português culto não se confunde com o normativo.
O culto é uma variedade falada por uma classe social. As regras normativas são calcadas na observação de como essas pessoas falam e escrevem. O gramático não inventa. Observa os dados de língua e, quando suspeita que algo já começou a ser aceito, registra o fato sob a forma de regra. Veja o caso do "ele" como objeto direto ("vi ele"). Há 30 anos seria inaceitável. Mas você vê isso nas gravações do Nurc.
Foi danoso ao estudo da língua as gramáticas terem referência na escrita?
Não, porque elas representam momentos numa cultura. A valorização da oralidade é recente. Não só porque rádio e TV são oralizantes como por causa do crescimento populacional, por não termos todas as crianças na escola, a que seus pais também não iam. O Brasil teve de graduar a própria percepção da tarefa escolar, daí a valorização atual da oralidade. Admitiu-se que, sendo a oralidade mais presente na vida do aluno, que se comece por ela, para só depois chegarmos ao escrito.
Sua gramática é, portanto, descritiva, e não normativa.
Exato. O descritivo é o ato de coletar dados de uma variedade, descrever os diferentes sistemas gramaticais, anotar o que os dados nos ensinam sobre como as palavras foram construídas, como estão organizadas numa sentença e como a sentença está articulada num raciocínio. É observar dados a partir de um elenco de perguntas que você fez. Uma gramática descritiva é um retrato, a partir do qual vou procurar as flutuações para uma mesma estrutura e verificar as situações sociais em que elas se aplicam. Uma gramática normativa recolhe o conjunto de variáveis e verifica qual a classe de maior prestígio social considera a melhor. Nesse momento, há uma decisão subjetiva - na descrição há um processo objetivo. Na normativa nós perguntamos sobre o que fica melhor, mais adequado, bonito. E pára-se por aí.
Para um público acostumado a certos e errados, fica difícil aceitar outra idéia.
É preciso ajudar as pessoas a verem que gramática é mais do que regras. Quando diz que algo é "certo" se fez uma escolha, que leva em conta o contexto de fala em que nos encontramos.
Se a escola deve ensinar o padrão, como o professor deve lidar com o preconceito pela língua?
Primeiro, a escola precisa deixar o padrão para o fim de cada curso, pondo no início a observação das variedades lingüísticas. O aluno precisa, é claro, ser informado que a sociedade exige o padrão. Nós nos julgamos, nos avaliamos o tempo todo. Se você quer ser bem avaliado, não pode escapar do padrão. Tem de optar por aquilo que foi chancelado pela classe que dita os padrões no país, não só na língua, mas na roupa, na vida, no pensamento. Ocorre que há cada vez menos expressões consideradas menores por preconceito. Muita coisa condenada tem freqüência de uso cada vez mais alta, principalmente porque a diferença lingüística entre uma classe e outra no Brasil não é, de fato, grande, e com isso deve diminuir ainda mais a quantidade de coisas condenadas. A condenação ainda não acabou, mas a sociedade brasileira está mais aberta à variedade. As próprias pessoas que fabricam os padrões já acolhem um maior número de expressões como padrão.
O fato de Lula ter virado presidente, mesmo sem dominar o padrão culto, é sinal da queda do preconceito no país?
"Muita coisa condenada tem freqüência de uso cada vez mais extensa, principalmente porque a diferença intelectual entre uma classe e outra no Brasil não é, de fato, grande |
O que mudou em tão pouco tempo?
A urbanização do país. Hoje, 80% da população mora na cidade. Se recuarmos a 1950, era o contrário. A urbanização intensa colocou em proximidade física as diferentes camadas que até então estavam separadas no espaço. O sujeito ignorante e analfabeto morava na roça. O escolarizado, na capital. Agora, que o pessoal da roça se mudou para a capital, as classes sociais tiveram maior contato, reduzindo o preconceito. Não o fez desaparecer. A urbanização fez as pessoas se aceitarem mais, passado o estranhamento inicial. Esse processo e a ascensão social dos operários mais qualificados permitiram eleger um presidente que não vinha das elites.
Temos um museu, 23 milhões de livros sobre português todo ano e até a Mangueira fará tributo ao idioma. O Brasil vive o seu "momento língua portuguesa"?
Acho que sim. O futuro da língua está no Brasil. Temos uma dinâmica social maior, e mais falantes. Esses fenômenos não devem estar ocorrendo ao acaso. Devem ser conseqüência da urbanização, da expansão das escolas, da tentativa de ensino universal, tudo isso está ocasionando mudanças na linguagem e na perspectiva das pessoas. Nos lugares em que isso ocorreu de forma plena, não há tanta preocupação de falar certo ou errado. Mesmo nos EUA, a diferença é entre o inglês do branco e o do negro. Entre brancos, entre negros, não se questionam o certo e o errado. Se isso ocorrer no Brasil, vamos nos concentrar no que importa, que é raciocinar sobre um fenômeno tão complexo como a linguagem, o maior produto do engenho humano.
É um passo enorme para a estrutura de ensino brasileira...
O objetivo da escola é formar o cidadão a falar de modo prestigioso. Mas a aula pode virar um lugar de problematização, não de transferência de achados feitos pelos gramáticos e lingüistas. Eles são os peritos, chegaram antes no pedaço. São profissionais, mas eu, aluno do fundamental ou do médio, posso pensar a minha língua. Posso fazer descrições e ver o que eles acham, se coincidem comigo, se perceberam coisas que não notei. Posso comparar o meu resultado com o do outro. É isso o que, acho, vai rolar nas escolas. É tarefa para a geração que tem hoje entre 30 e 40 anos, que dá aula hoje.
Essa geração está preparada para isso?
Ainda não. Falta à universidade preocupação sistemática com isso. Até há treinamento de professores, mas não uma política lingüística previamente discutida, continuada. Cada universidade vai para um lado. É claro que quem fez mais pesquisa tem mais possibilidade de dar pitacos. Mas não há saída. O Estado vai ter de preparar profissionais criativos. Não para repetir as lições do passado, porque a sociedade é outra e os desafios, também.
Como um "descritivista" escapa da imagem de que aposta num "vale-tudo" sem regras?
Os lingüistas não foram bem entendidos. Eles não dizem que vale tudo. Pelo contrário, eles estabelecem correspondências, correlações, entre o fato lingüístico e a situação social em que ele ocorre. As análises feitas demonstraram isso. Se você fala com pessoas de sua classe, numa situação de informalidade, é a estrutura "xis" que vai aparecer. Se a situação é de formalidade, será "ípsilon". Se fala com pessoas de outra classe, uma terceira estrutura se aplica. Você deve falar com as pessoas e elas com você usando a variedade socialmente aceita. Isso não é pregar um vale-tudo. Os lingüistas não seriam tão estúpidos. Mas como escapar dessa imagem? Pelo trabalho de mudança em sala de aula, valorizando os alunos, não para concordar com eles, o que seria demagogia, mas para começar por onde eles estão para conduzi-los para onde não estão.